terça-feira, 15 de janeiro de 2008

CASAS DE ACOLHIMENTO NOS AÇORES SOBRELOTADAS

As Casas de Acolhimento existentes na Região estão “sobrelotadas”, mas as próprias circunstâncias sociais dos Açores são “diferentes”. Tanto nos Açores como no continente, há falta de vagas e de espaço. Há muito boa vontade de se fazerem novas casas de abrigo até com melhores condições, mas não há condições financeiras para isso.Daniel Cotrim, Assessor Técnico da Direcção da APAV, afirma que, muitas vezes, o trabalho é dificultado porque grande parte dos crimes ocorrem em casa, um local privado. Até 1999, a Violência Doméstica era considerada um crime semi-público e o avanço do processo dependia da queixa da própria vítima. Agora, qualquer pessoa pode fazer a denúncia.A Associação Portuguesa de Apoio à Vítima nasceu há cerca de quinze anos e apoia todas as pessoas vítimas de crime, através de gabinetes distribuídos por todo o país. O de Ponta Delgada é o mais recente, pois nasceu a 20 Fevereiro de 2004.Segundo Helena Chaves Costa, gestora do gabinete de Ponta Delgada, a vítima dirige-se à APAV, explicando qual a situação que a afecta e “a associação faz uma avaliação do tipo de apoio que esta necessita, nomeadamente jurídico, psicológico ou social”. Avança que, regra geral, a vítima é posteriormente encaminhada para outra instituição com a qual colaboram, pois reconhece que, muitas vezes, “uma só instituição não resolve problemáticas difíceis e multifacetadas como a violência doméstica, por exemplo”. Resta ponderar a questão com vista a encontrar uma solução. Questionada sobre o que mais leva as pessoas a recorrerem à APAV, a gestora do gabinete Regional aponta a “violência doméstica, geralmente entre o casal e de pais a filhos”, como a maior causadora de vítimas, seguida de crimes de “ofensa à integridade física” (entre pessoas que não vivem na mesma casa) e contra o património, como furto e roubo.Referindo-se às crianças, Helena Costa avança que é, frequentemente, confrontada com situações de “abuso sexual e maus tratos físicos e psicológicos”, alertando que a criança a partir dos “catorze, quinze anos” já é capaz de denunciar a situação, mas é raro fazê-lo, sobretudo por “vergonha”.“Os progenitores ao verificarem que a criança é maltratada por uma terceira pessoa, denunciam a situação ou esta acaba hospitalizada e durante os exames médicos são notados os sinais de maus tratos”- salienta. A gestora do gabinete de São Miguel considera o balanço da actividade da APAV “extremamente positivo”, acrescentando que as pessoas que recorrem ao serviço “acabam por manter contacto e nota-se haver uma certa satisfação em relação ao serviços prestados”.Lembra ainda que no início o número de processos era “muito reduzido”, mas admite que, felizmente e infelizmente, já tiveram “mais processos em Janeiro deste ano”, do que nos últimos três meses de 2004. O que significa que “se começa já a denunciar as situações” e a colocar a vergonha de lado.“Os crimes de abuso sexual e violência doméstica acarretam uma grande carga de vergonha por parte da vítima, o que já começa a desaparecer e isso é muito positivo”- reconhece.As maiores dificuldades da APAV no seu dia-a-dia residem, a seu ver, nos casos de “violência doméstica, onde é feito um grande investimento por parte dos técnicos e das outras instituições” com quem cooperam, de modo a encaminhar a vítima a uma terapia familiar, por exemplo. Outra acção indispensável consiste em “motivar” as pessoas, que frequentemente se queixam de violência psicológica, que admite ser “extremamente difícil e complexa, pois não há provas”.“As crianças são geralmente vitimadas dentro de casa, o que impede o apoio da APAV. Temos os pais em casa que são agressores e nos impedem de ajudar aquela criança”- lamenta, avançando que nessa altura se vêem obrigados a recorrer a meios legais, que considera “demasiado demorados”. “Ficamos à espera de pedidos de medidas de afastamento durante muito tempo”- alerta.Na análise de crianças vítimas de maus tratos psicológicos, Helena C. Costa define os serviços de psicologia como “muito poucos e sobrecarregados”, além da habitual resistência em ser atendido por este serviço, pois “ainda não se perdeu a ideia de que a psicologia tem a ver com a área de saúde mental”.“O apoio psicológico é benéfico e ajuda a pessoa a enfrentar a situação. Mas esta tem de querer ser ajudada e de estar motivada para o receber, não podendo ser obrigada a fazê-lo”- salienta, descrevendo a APAV como uma entidade que tenta “desmistificar” a situação e informar sobre o papel do psicólogo e a utilidade da consulta.Outro obstáculo é o “internamento compulsivo”. A APAV recebe pessoas cujo familiar se tornou “agressivo”, devido ao mal de que padece e “é complicado a pessoa receber um parecer favorável” ao pedido de internamento. “É difícil provar que o indivíduo tem essas atitudes agressivas, que em sociedade e fora de casa não aparenta ter”.No que toca às crianças, são “poucas” as comissões de apoio, tendo em conta a quantidade de crianças que necessita de protecção. Não contando com o facto de que “deveriam dispor de mais técnicos” em trabalho voluntário. Helena C. Costa reconhece ser muito “complicado, embora haja boa vontade”. A “falta de autonomia” das crianças torna a situação ainda “mais difícil”. Os chamados “entraves culturais” são outro factor a ter em conta, pois a partir de certa idade tem de ser a própria criança a apresentar queixa.Falando da sua experiência pessoal, Helena C. Costa lembra que já lhe aconteceu ter “crianças de 16 e 17 anos que foram abusadas sexualmente e que não encaram o acto como um abuso, o que acaba sendo frustrante, uma vez que “o processo depende da queixa dos menores”.A gestora do gabinete regional defende que o próximo objectivo a alcançar deverá passar por uma “mudança de mentalidades”, que tem conduzido a instituição à realização de diversas “acções de sensibilização” sobre “maus tratos a crianças, sobretudo abuso sexual, idosos e crimes em contexto escolar”.A associação recebe da Câmara Municipal de Ponta Delgada uma verba anual de 36 mil euros. Mas a nível nacional encontra-se há “cerca de dois anos sem qualquer tipo de apoio por parte do Estado, apesar da existência de um protocolo com dois Ministérios”. A triste realidade é que, se não fosse a referida autarquia, “a qualquer instante”, a APAV encerraria o seu gabinete. Referindo-se ao número de funcionários, a gestora da APAV em Ponta Delgada avança que, no momento, têm funcionários suficientes: uma advogada e uma técnica de Serviço Social, “ambas ao abrigo do programa Estagiar L”, que termina já em Março. “Nessa altura, deixaremos de ter funcionários suficientes”- admite, reconhecendo a necessidade da abertura de vagas para técnicos voluntários.Helena C. Costa aproveita a ocasião e diz que “quem tiver formação em Serviço Social, ou outras áreas como Direito e Psicologia, poderá inscrever-se no Gabinete de Apoio à Vítima”, evidenciando que “ter o curso completo não é uma exigência. Basta apenas ser finalista”. Em relação às instalações e ao material não tem nada a apontar, graças ao protocolo estabelecido com a Câmara Municipal de Ponta Delgada, que lhes proporcionou “óptimas” instalações e material.Quanto à concretização de projectos, acções de sensibilização que estão prestes a ser concluídas, obtiveram respostas “muito positivas” da população e foram alargadas a outros concelhos. Na sua opinião, é essencial “sensibilizar a população, alertá-la para o que constitui, ou não, crime perante a Lei e o que esta pode fazer perante um crime, mesmo não querendo apresentar queixa às autoridades. Esta lacuna, a APAV não desistirá de eliminar”. A Associação tem também realizado projectos de adesão, agindo no campo da prevenção de crimes rodoviários, com os reclusos do Estabelecimento Prisional de Ponta Delgada. “Destina-se a quem já cumpriu ou cumpre penas por crimes rodoviários, para que isso não se repita”-acrescenta.Quando surge alguém a querer denunciar uma situação de violência doméstica, por exemplo, e com medo de voltar a casa, o primeiro passo é “analisar” a situação. Há pessoas que podem receber apoio de outros familiares, outras acorrem a instituições de acolhimento e quando não há vagas é complicado.“Não há vagas nas casas de acolhimento, pois o número de pessoas é muito superior”- lamenta, lembrando ainda ser “muito dispendioso” o transporte para fora da ilha. Resta à APAV tentar encontrar, junto de técnicos e com a vítima, a melhor solução para vidas muito “complexas”.A APAV dispõe também de uma linha telefónica de apoio, que depende do Ministério da Segurança Social, precisamente para estas situações e em que a pessoa recebe imediatamente ajuda. “A linha deveria funcionar a nível nacional, mas isso não acontece, o que dificulta muito o nosso trabalho”, pois as ilhas não têm acesso a este apoio, nem há perspectivas de que isto venha a acontecer.Daniel Cotrim, assessor técnico da Direcção da APAV, afirma que para evitar o encerramento da Associação a nível nacional, o Estado tem, sobretudo, de “cumprir o protocolo” estabelecido, nomeadamente com os Ministérios da Administração Interna, Segurança Social e Justiça. Situação em falta há dois, tês anos, que se deve à “conjuntura nacional dos últimos tempos e aos três governos dos últimos três anos”, acrescentando que as assinaturas ficaram por dar. O trabalho social foi “descurado e desapoiado” e, além de ser uma época de crise, há grandes “desconfianças, que esperemos que passem, relativamente a certas instituições sociais”.Acrescenta estarmos perante uma situação de “manipulação, na qual se pensou que as vítimas ou as instituições tratariam a situação como uma espécie de negócio ou fraude”.As “verbas” são essenciais, ainda mais numa Organização Não Governamental (ONG) e sem fins lucrativos. Lembra que a APAV funciona em todo o país, desde o início, com uma rede de voluntariado social, a nível de Serviço Social, Psicologia e Direito, acrescentando que “a gestora do gabinete de Ponta Delgada é técnica de Serviço Social e aufere dos seus honorários”.O assessor reconhece também a “carência” do gabinete regional, essencialmente a nível da psicologia, pois, a seu ver, “os psicólogos não se estabelecem muito nesta cidade, optando por residir no continente”. É uma situação “crítica”.Muitas vezes, o trabalho da APAV é dificultado quando os crimes ocorrem dentro de casa, um local privado. Daniel Cotrim explica que se deu uma “grande” alteração a nível legislativo. Até 1999 a violência doméstica era um “crime semi-público e o avanço do processo dependia da queixa da própria vítima”. A partir desta data, trata-se de um crime público, onde “qualquer pessoa” pode fazer a denúncia. Acrescenta ainda que resta investir numa “melhor aplicação” da Lei existente, o que, a seu ver, não tem acontecido.“É necessário um trabalho de prevenção que deve começar na idade escolar, e felizmente temos alguns projectos em escolas, além do Gabinete da APAV em Ponta Delgada que tem realizado acções de sensibilização e de prevenção”- salienta.Daniel Cotrim apela fortemente para um “agilizar” da Lei, defendendo ser essencial tornar a Justiça “menos burocrática, demorada e morosa”. Caso contrário, muitas pessoas continuarão a “desistir” de apresentar queixa. Esclarecendo que os maus tratos psicológicos já são considerados crime, avança que, regra geral, o tema da violência doméstica é abordado como sendo um crime, mas na realidade não o é. “É crime, sim, o que dela advém, como os maus tratos físicos e psicológicos”.Segundo o assessor, a APAV actua na área da violência psicológica “desde o primeiro apoio emocional à vítima”, depois dos chamados maus tratos físicos, que são uma “prioridade” para as pessoas. A seguir surgem as questões relacionadas com “humilhações, maus tratos psicológicos e insultos” de que foram alvo. Esta instituição intervém no processo, “fazendo um relatório com todos os dados” e informando a pessoa que deve de apresentar queixa, além de fornecer o apoio psicológico necessário. “A violência psicológica deixa as maiores cicatrizes e traumas para o resto da vida”- enfatiza.A APAV considera “sempre verdadeiro” qualquer depoimento prestado por crianças, respeitante à violência doméstica ou sexual. Daniel Cotrim salienta que o passo seguinte é “descobrir” em que moldes a história é verdadeira.“Se partir do princípio que a criança está a mentir, deixo de cumprir a missão da APAV que é ouvir e apoiar as pessoas, sem qualquer espécie de moralismos ou julgamentos”- afirma.Referindo-se ainda à veracidade dos depoimentos, avança que “poucos” têm sido os casos em que detecta crianças a mentir, salientando que “quando isso acontece, quase sempre são manipuladas pelos adultos, em questões de divórcios e de pensões de alimentos”, pois, na grande maioria das vezes, as crianças e jovens dizem a verdade.Quando o caso avança para tribunal, o assessor considera ser fundamental uma avaliação psicológica “sempre feita por entidades independentes e, de preferência, bem”.Sobre como trabalhar com crianças vítimas de violência sexual, a Associação defende duas práticas para “padronizar os instrumentos, entrevistas e a forma de estar com as vítimas, para se provar, ou não, a veracidade dos depoimentos”.Daniel Cotrim reconhece a necessidade de “mais comissões de apoio a crianças e jovens”, mas não deixa de mencionar que devem ter cada vez mais ”qualidade”, pois é “fundamental” que os técnicos tenham formação. “Não basta gostar de crianças. É sobretudo importante formar as pessoas para estarem preparadas para as situações que vão encontrar pela frente, essencialmente quando ambas as partes são ouvidas”.Não menos importante são as comissões terem alguma “autonomia para avançarem rapidamente” em situações normalmente de risco. Apesar de reconhecer que estas não têm autonomia de “retirar os menores à família”, o assessor avança que estas dão pareceres e fazem o processo chegar a tribunal.Lembrando a questão da complexidade dos serviços jurídicos, admite que “o pior é no tribunal, pois é tudo mais moroso”, salientando ser preciso “facilitar-lhes” o trabalho e há situações que se “arrastam” durante meses.Chama também a atenção para o facto das comissões, no continente português, estarem “acerbadas” de processos ainda não trabalhados.Falando nas medidas de afastamento diz serem, por definição, medidas de “emergência”, pedidas quando a pessoa está em situação de risco. Mas a “emergência que existe ultrapassa, muitas vezes, os quatro meses”.Tem de se deixar de pôr em causa a vítima. Curiosamente, “a Justiça põe mais em causa a vítima, do que o alegado autor do crime. Pensa-se se a vítima não estará a “mentir ou se não quer compensações secundárias”, o que, a nosso ver, faz com estas medidas demorem mais a serem postas em pratica.O internamento compulsivo é um processo “complexo e depende da autorização do próprio agressor”. As pessoas com distúrbios mentais nem sempre estão descompensadas e numa audiência de Junta Médica são “questionadas sobre um eventual tratamento que negam”. Apesar da Lei estar “bem construída”, há falta de agilidade no processo. Outras vezes, “os juízes ou os serviços de saúde competentes não conhecem muito bem a Lei”. Ás vezes, a única solução é “retirar” a vítima de casa.Quanto às casas de acolhimento, as existentes na Região estão “sobrelotadas”. As circunstâncias sociais dos Açores são “diferentes”, mas tanto nos Açores como no continente, há falta de vagas e de espaço. “Há muito boa vontade de se fazerem novas casas de abrigo, mas não há meios financeiros”.A não extensão da linha telefónica de apoio da APAV, o assessor diz prender-se com questões “técnicas da Portugal Telecom”. A instituição está a tentar resolver a questão, mas “não há perspectivas”. De qualquer modo, avança que “as pessoas podem ligar para a linha e para o respectivo gabinete de apoio que a chamada é reencaminhada” e atendida, por um dos 250 operadores voluntários. O serviço funciona das 10h00 às 18h00. O ideal seria uma linha gratuita, mas com todos estes “constrangimentos económicos”, defende ser mais importante um fundo de maneio do que investir num atendimento de 24 horas. “Não que não o queiramos fazer”.
Raquel Moreira
Public, "Atlântico Expresso, 28 Fevereiro 2005

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