quarta-feira, 16 de abril de 2008

JOÃO DE MELO: Um açoriano que foi longe

Desde finais dos anos 60 que João de Melo nos encanta com as suas obras literárias. Gente Feliz com lágrimas e O Meu Mundo não é Deste Reino são uma pequena amostra deste escritor micaelense.
Os leitores, “foram eles que mudaram a minha vida por um livro, Gente Feliz com Lágrimas, sem que eu o esperasse”.

T.N.- Está há algum tempo afastado da sua terra natal. Até que ponto é que nascer numa ilha ainda influencia a sua escrita?

J.M.- A distância enche-nos de algumas saudáveis nostalgias (difusas, algo indefinidas), e estas são como que o alimento moral da minha escrita. Não distingo entre a distância geográfica e a outra, a temporal. Os livros podem ser uma forma compensatória de regresso, talvez na busca da completude psicológica ou espiritual que não encontro neste mundo grande por onde ando. Escrevo sempre a partir da periferia, a partir de um território de fronteira que me ajuda a melhor compreender o centro e o todo – Portugal.

T.N.- Acompanha o que se produz nos Açores, em especial no campo da literatura? Tem algum escritor de eleição na Região? Nacional e estrangeiro?

J.M.-
Tento manter-me a par do que se escreve e publica, tanto dentro como fora dos Açores, bem entendido. Beneficio do facto de ser amigo de um número apreciável de escritores açorianos, com quem mantenho relações de amizade quase fraterna. Recebo os seus livros, leio-os. Alguns fazem mesmo parte do meu núcleo restrito de amigos, como acontece com Fernando Aires, que muito prezo e admiro.
Os Açores são um território de talentos literários, como se sabe. Basta lembrar os nomes de Gaspar Fructuoso, Antero, Teófilo, Nemésio, Mesquita, Natália e o meu particularmente saudoso amigo Emanuel Félix. É preciso atender à obra de escritores como Dias de Melo, José Martins Garcia, Cristóvão de Aguiar e outros. É impossível nomeá-los a todos, incluindo os mais novos, como a Judite Jorge, o Eduardo Bettencourt Pinto, o Joel Neto, etc.
Repare, publiquei uma “Antologia Panorâmica do Conto Açoriano” em 1978, fiz crítica literária, colaborei bastante em suplementos culturais com Carlos Faria, Álamo Oliveira, J.H.Santos Barros, Emanuel Jorge Botelho, Urbano Bettencourt, Onésimo Teotónio Almeida, Daniel de Sá, Adelaide e Vamberto de Freitas. Eles são a minha geração dos Açores. Mas pertenço também a uma outra geração no Continente: entrei na onda narrativa dos anos 80, que trouxe para a literatura nomes como António Lobo Antunes, Mário de Carvalho, Lídia Jorge, Teolinda Gersão, Mário Cláudio, José Saramago e uma quantidade imensa de outros – romancistas, poetas, etc. Sou, em alguma medida, produto literário dessas duas margens, de dois mundos verticais (um rural, outro urbano), e sinto que consigo ouvir o coração do mundo na dupla sintonia daquilo que escrevo. Mas os meus mestres moram noutras casas. Não fui influenciado nem por Nemésio (que foi, aliás, um mestre sem discípulos entre nós), nem por nenhum desses que nomeei. Ninguém teve melhor mão em mim do que o discurso bíblico, os livros de Eça de Queirós, Fernão Lopes, Mendes Pinto, Camões, Pessoa e Nuno Bragança. Não sei qual foi o melhor livro que li até hoje – mas frequentei os franceses (Stendhal, Flaubert, Baudelaire), os italianos (Lampedusa, autor de “O Leopardo”, Moravia, Dino Buzzati, Tabucchi), os russos (Dostoievsty, Tolstoi, Gorki, etc.), o checo Franz Kafka, que veio a ser crucial na minha viragem interior, os ingleses (Virginia Woolf, absolutamente genial), os norte e latino-americanos (Julio Cortázar, García Márquez, Roa Bastos, Alejo Carpentier) e os espanhóis: penso que Miguel de Cervantes, autor de “Don Quijote”, é um dos maiores génios literários da humanidade, a par dos clássicos antigos.

T.N.- Qual a obra que, até hoje, lhe deu mais prazer escrever? Porquê?

J.M.- Hesito sempre entre o meu livro de viagens “Açores, O Segredo das Ilhas” e o romance “O Meu Mundo Não É Deste Reino”, que acaba de publicar-se em Espanha juntamente com a novela que lhe dá sequência, “A Divina Miséria”, e que completa a minha trilogia açoriana. “O Meu Mundo Não É Deste Reino” fez de mim um “escritor” – dando-me a posse de um universo imaginário próprio e de uma linguagem criada para ele: barroca e musical. Nunca mais senti a necessidade de procurar fora de mim nem esse mundo nem essa linguagem. Mesmo o livro seguinte, o meu romance sobre a guerra em Angola, “Autópsia de Um Mar de Ruínas”, colhe parte da sua energia narrativa no mesmo movimento de descoberta de uma linguagem personalizada, reconhecível, só minha.

T.N.- Em contrapartida, publicou algum livro que, a seu ver, não transmitisse mesmo a mensagem que queria passar?

J.M.-
“O Homem Suspenso” conheceu apenas três edições, talvez tenha ficado aquém das minhas expectativas de público. Também esperei ter mais leitores para “Açores, o Segredo das Ilhas”, o tal livro de viagens que escrevi com a intenção de “actualizar” o olhar de Raul Brandão sobre “As Ilhas Desconhecidas”, que continua a ser o texto clássico, a par de “Mulher de Porto Pim”, de Antonio Tabucchi, dessa literatura de viagens. Mas esse meu livro teve a desvantagem de ser editado em álbum ilustrado e a um preço porventura excessivo. Não chega às mãos dos seus destinatários. Vamos tratar de o devolver a uma edição popular, porque acredito ser uma boa narrativa da paisagem física e social dos Açores.

T.N.- Neste momento, o que está a escrever? Pode levantar a ponta do véu?

J.M.- Um livro de contos e um romance muito grande, talvez maior do que o “Gente Feliz com Lágrimas”, que este ano comemora 20 anos de edição. É cedo ainda para falar deles. Não têm título, são apenas crias que mal se têm de pé. Acredito que vão ser os meus melhores livros, e que um e outro me ajudarão a regressar a Portugal quando deixar a Espanha e retomar os passos que fui perdendo na literatura portuguesa contemporânea.
Mas quem somos nós para fazer prognósticos? Devemos ter a humildade de reconhecer que só aos leitores compete ter a palavra. Foram eles que mudaram a minha vida por um livro, “Gente Feliz com Lágrimas”, sem que eu o esperasse. Ainda bem que existe esse lado imponderável quanto à sorte e ao destino dos livros. Se assim não fosse, os escritores tornavam-se nuns seres calculistas, frios, contabilísticos (que os há por aí, mas não lhes dou credibilidade).

J.M.- Costuma dizer-se que qualquer um pode ser artista? Na sua opinião, o que distingue o verdadeiro artista nos dias de hoje?

J.M.- As pessoas em geral sabem isso, não precisam que seja eu a dizê-lo. Nas artes plásticas, por exemplo, as coisas estão à beira do limite extremo e até da negação do objecto artístico essencial. A espectacular recuperação da fotografia e do vídeo para o campo da criação artística pode significar que a pintura e a escultura entraram já na derradeira encruzilhada (o Surrealismo é porventura o último movimento criativo puro), e que em breve se iniciará o caminho do regresso a um novo classicismo, a um segundo renascimento.
Sentimos em redor, com poucas excepções, a ideia da decadência e do fim dos novos tempos. A decadência chegou também à música, à escultura, e até à poesia, e não apenas às artes plásticas. O único discurso que se tem mantido vivo e ascensional parece-me ser o narrativo. Mas também tem sido alvo de muita perversão por falsos escritores e por traficantes de prosa que só geraram falsos leitores. A crise da literatura seria também uma crise de leitura, que se deve ao facto de vivermos num tempo que aposta na negação dos valores éticos, sociais, ideológicos que sustentavam a ideia de cultura).

T.N.- A crítica costuma ser simpática!? Já teve comentários que lhe surpreendessem?

J.M. - Já tudo me aconteceu, do melhor ao pior, pelo que me considero vacinado e até imune tanto ao licor como ao veneno dos críticos. Não devo queixar-me. Tive a sorte e o azar de receber prémios, de ser lido por meio milhão de portugueses, de estar traduzido em 10 países. Tudo isso me foi escondendo por detrás de um arquivo monstruoso (sobretudo algo caótico) de críticas, opiniões, cartas, etc. Fizeram-se dezenas de teses sobre alguns dos meus livros que fazem parte de um espólio, um património que por enquanto não quero ver separado da minha biblioteca pessoal, mas que um dia terá de ser catalogado a preceito, antes de lhe dar um destino final. Recebi cartas magníficas de escritores como Ferreira de Castro, Assis Esperança, Miguel Torga, Fernando Namora, Vergílio Ferreira, José Cardoso Pires e outros. Nunca tive uma crítica desagradável em nenhum dos países onde tenho livros traduzidos. Talvez devesse ser estrangeiro também em Portugal.

T.N.- A sua literatura, está marcada pela sua participação na guerra colonial angolana e pela sua vida nos Açores. Qual a relação entre a ficção e a realidade?

J.M.-
Nós somos a geração que tudo viveu e que acerca de tudo escreveu. Fomos educados no seio de uma ditadura rural e eclesiástica, estudámos pelos chamados “livros únicos” do regime salazarista, fomos à guerra colonial sem termos nada a ver com África, regressámos a tempo de assistir ao golpe-de-estado, à revolução, à chamada transição democrática e ao regresso de Portugal à Europa. Seriam motivos bastantes para justificarem os nossos actos criativos. Depois, cada um de nós codificou a sua escrita à luz da sua própria sensibilidade estética. No meu caso, a guerra colonial em Angola funcionou como uma autêntica descida ao inferno. Vi morrer e matar muita gente da minha idade e mais nova ainda, e nada disso era estritamente nem politicamente necessário. Salazar não aceitou negociar, nem descolonizar. Negou a própria existência de “guerra” (chamando-lhe “missões de soberania” nas colónias de África (que designava por “províncias ultramarinas”). Para mim, a guerra foi uma história de logros, uma experiência de tragédia e inutilidade. E uma iniquidade histórica. Escrever sobre ela, contra ela, foi um imperativo ético, um movimento natural da consciência e da criação. A literatura não pode ver-se separada nem da ética criativa nem da vida que se viveu. Ninguém escreve fora de si.
Não sei, nem me importa saber, que livros teria escrito se tivesse vivido noutro tempo e noutro mundo, porque também não sei que espécie de pessoa seria. O que mais me espanta é que tão pouco dessa memória histórica tenha sido passada de uma geração para a seguinte.

T.N.- Olhando para o seu percurso de vida, como escritor, mas também como homem, há aspectos que teria alterado? Pode exemplificar?

J.M.- É um simples exercício de estilo, bem sei. Mas vou responder. Alteraria praticamente tudo o que vivi. Não teria nascido na Achadinha, no meio de vacas e galinhas, não teria ido para o seminário nem para a guerra colonial. Talvez nem quisesse ter nascido em Portugal. O que não significa desprezo nem arrogância acerca das minhas origens. Ninguém amou Portugal como Eça de Queirós, creio eu. E por isso também ninguém foi tão cáustico nem tão verdadeiro naquilo que sobre ele escreveu. A minha vida consistiu sempre em fazer das fraquezas força, caminhar adiante sem olhar muito para trás e merecer chegar ao alto da minha montanha. Do alto dela, dessa minha montanha, vê-se todo o universo que me pertence. É uma visão de cultura, história e humanidade. Hoje sou muito mais urbano do que rural. Mas entendo que a vida e a literatura passam continuamente pelas cidades e pelos campos.

Raquel Moreira
Public in jornal Terra Nostra, Abril de 2008.

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